quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Reprodução humana

Reprodução humana, como a de qualquer ser vivo, é processada mediante a ocorrência de vários eventos com caráter seqüencial e ordenado. Existe uma contraparte masculina, a que se passa no homem, e uma feminina, na mulher. Nessa sucessão de eventos não é possível determinar um começo. Trata-se de um processo contínuo que culmina no nascimento de um novo ser, uma criança. Uma pessoa que, por sua vez, já traz dentro de si o processo reprodutivo em pleno funcionamento, embora em fase latente ou de repouso. Nem sempre ocorre o desenvolvimento de modo normal, podendo haver dificuldades mais ou menos sérias definidas como esterilidade ou infertilidade e que representam patologias da reprodução humana.
A ciência proporcionou ao homem o conhecimento de várias etapas do fenômeno reprodutivo, nas quais pode intervir, seja para bloquear o seu desenvolvimento, a anticoncepção, seja para criar condições favoráveis à sua consecução, a chamada reprodução assistida.
Professor adjunto de ginecologia, Faculdade de Medicina da Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Titular do Grupo de Interesse em Anticoncepção da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana.
Até que ponto é possível intervir nesse processo sem cometer falta grave contra os princípios da moral e da ética?
Esta é uma questão de resposta complexa. Implica na consideração de diversos valores, sendo os mais importantes: vida, pessoa, função sexual, função reprodutiva, saúde reprodutiva e gestação.
Nada é mais difícil de ser definido do que a vida. Todas as pretensões de fazê-lo resultaram frustradas e com conceitos sempre controvertidos. Muitos foram os filósofos, biólogos e médicos que o tentaram. Alguns, em termos metafísicos; outros, encaminharam a questão em termos puramente físicos e químicos. Não faltou quem a definisse como "conjunto de fenômenos que se opõem à morte". Resta, contudo, uma insatisfação, um vazio, embora todos saibamos, a grosso modo, distinguir com facilidade um ser vivo de um inanimado. Nas minúcias, porém, aparecem as indefinições com repercussões éticas. Não podemos nos esquecer, por exemplo, que nossa vida depende fundamentalmente da morte. O homem se alimenta de seres que morrem para lhe proporcionar os nutrientes essenciais. A chamada "luta pela vida" deve ser conduzida com cuidados para não desembocar em comportamentos mais emocionais do que racionais. Certamente, não é esse o caminho que leva à verdade, o mais importante balisador da conduta humana (Ética).
No campo da reprodução humana a vida que interessa é a da pessoa, embora também ainda não esteja claro em que momento desse processo reprodutivo pode ser reconhecida uma pessoa. Alguns afirmam ser a concepção; outros, em fases mais avançadas.
Certo é que a vida não começa na fecundação. Antecede-a. Espermatozóide e óvulo devem estar vivos para que possa existir a união de ambos, dando origem à célula-ovo. Seria esta já uma pessoa? É possível considerar uma célula apenas, ou, então, um pequeno conjunto de células (blastocisto), como uma pessoa? Existem vários argumentos para defender a idéia de que tão logo se processa a fecundação já está constituído um novo ser, uma pessoa. Os mais importantes dizem que essa célula traz consigo toda a potencialidade do desenvolvimento da pessoa; que já possui a constituição gênica do indivíduo adulto; que constitui uma individualidade ímpar; que tem o direito de nascer. Em contrapartida, há argumentos que se opõem a esses, sendo os mais significativos os que se baseiam na idéia de que uma célula é apenas uma célula; que da célula-ovo, ou do blastocisto, se originam também a placenta, as membranas, o cordão umbilical, os anexos fetais, enfim, que ao cabo da gestação são desprezados; que de uma célula-ovo podem surgir dois indivíduos (gêmeos univitelinos) e não apenas um; que a célula-ovo e o blastocisto não têm condição de sobrevivência e de evoluírem a embrião e feto a não ser se implantados na parede uterina da mãe. Portanto, só se poderia falar em potencialidade após o estabelecimento dessa relação materno-embrionária; que uma potencialidade é uma abstração, algo que não existe realmente, é um vir a ser e, por isso, não merece o mesmo tratamento, em termos de direitos, de um ser atual, real; que a constituição gênica da célula-ovo não precisa obrigatoriamente corresponder à do feto ou do recém-nascido, tantos são os casos de mosaicismos observados. Outros tantos argumentos, para um lado e para o outro, podem ser arrolados.
Parece natural deduzir-se da discussão que a gravidez é a situação-chave e constitui o elemento fundamental nessas considerações, pois representa a condição para a formação, o crescimento e o desenvolvimento do ser humano.
Aqui, novamente, se apresenta um grande problema: quando se inicia a gestação?
Repete-se a fragmentação das opiniões. Segundo uns, a gestação inicia-se com a fecundação. Este pensamento tem suporte no princípio de que a célula-ovo já é uma pessoa, conforme anteriormente exposto, e que tão logo seja constituída estabelece-se a gravidez. Outros consideram que a gestação tem início com a nidação, momento em que essa entidade, chamada ovo ou blastocisto, começa a estabelecer uma verdadeira troca com o organismo da mãe, cedendo-lhe substâncias que lhe proporcionam modificações generalizadas, tanto do ponto de vista orgânico quanto emocional, e dele recebendo todos os nutrientes que a partir de então se tornam necessários ao seu crescimento e desenvolvimento. O livro Williams Obstetrics registra: "Não há dúvidas de que a ovulação depende de interações cérebro-hipófise-ovarianas na mulher, antes da gravidez; mas, após a concepção, o estabelecimento e a manutenção da gravidez são altamente dependentes das contribuições feitas pelo blastocisto, embrião e, após, pelo feto. Um sistema de comunicação biomolecular se institui entre o zigoto/blastocisto/embrião/feto e a mãe, o qual é operativo desde antes do momento da nidação e persiste até o parto. Esse sistema de comunicação materno-fetal é essencial ao sucesso dos processos envolvidos na implantação do blastocisto, no reconhecimento materno da gravidez, na adaptação materna à gravidez. (...) Há componentes de processos, tanto neoplásicos como inflamatórios, envolvidos na implantação do blastocisto. O blastocisto produz prostaglandinas, fator ativador de plaquetas e ativador plasminogênico. De fato, a completa decidualização do endométrio somente tem lugar após a implantação do blastocisto. Assim, o blastocisto é uma eficiente força dinâmica, invasiva e agressiva, que dirige o começo da gravidez bem sucedida.(...) Logo após a implantação, ou no momento em que ocorre, há uma supressão da formação do antígeno HLA, nos tecidos fetais extra-embrionários (trofoblasto), isto é, naqueles que abraçam os tecidos maternos; este deve ser um mecanismo fundamental através do qual o feto em desenvolvimento ganha aceitação imunológica durante a implantação do blastocisto."
Essa idéia de que a gravidez inicia-se com a nidação encontra grande suporte nos processos de fertilização in vitro, na qual a fecundação ocorre fora do organismo materno. Há que se pensar se aquele ovo ou zigoto assim surgido, fora do útero humano, tem a consistência de uma pessoa. A nidação é o momento em que a mulher deixa a sua condição de simples mulher e passa a ser mãe, seja por fecundação natural, seja pela artificial, in vitro.
A importância da gravidez é ressaltada no trabalho de Hilde Lindeman Nelson, onde tece considerações sobre a gravidez após a morte. Cabe trazer algumas de suas idéias.
Afirma a autora que suportar ou manter uma gravidez após a morte da gestante contribui para a interpretação má, antiga e perniciosa do significado de gravidez: "uma atividade humana, que se assemelha ao trabalho do arquiteto, reduzida ao funcionamento rotinizado da abelha". Os conceitos de "vivendo", "morrendo" e de "morte" têm sido borrados ou confundidos pela tecnologia médica. Como conseqüência, têm prosperado muitas confusões conceituais. Uma delas é essa idéia de que a gravidez é simplesmente um processo biológico puro, que envolve apenas uma interação de processos orgânicos, sem requerer nada mais além de não se interferir neles. Essa falsa idéia sobre a gestação reforça os princípios ideológicos que rebaixam a mulher.
A gravidez, para a mulher, é um fenômeno biológico como qualquer outra atividade dela. A mulher grávida é como um arquiteto e não como uma abelha. Se, por um lado, assim como a abelha, ela segue os ditames da natureza, por outro, ao fazê-lo, aprimora-os, ordena-os e os modela por meio de sua capacidade criativa e de sua atividade intensional. A mulher, assim, transforma o processo natural, valoriza-o e lhe dá significado. Diferentemente dos outros animais, atribui uma razão à sua gravidez, um propósito que perdura.
Além disso, a mulher grávida estabelece um relacionamento com seu feto. Esse relacionamento pode ser positivo, favorável, ou, ao contrário, negativo. Tanto pode ser harmônico com o feto, em que este como que fizesse parte de si própria, como pode ser negação. Essa atividade criativa, eivada de propósitos, contribui de modo decisivo para o desenvolvimento da personalidade da criança.
Por tudo isso, conclui-se que a gravidez não é qualquer coisa que atinge a mulher de fora para dentro. É, isso sim, um fato nela própria e dela mesma, com importância central na sua existência e na sua essência. No caso em que a gravidez for conseqüência de uma intrusão indesejada, como acontece, por exemplo, quando se instala por meio de estupro, a mulher experimenta-la-á como um fato externo, que nada tem a ver com seu ser. Com muita probabilidade a mulher reconhecerá a gravidez como algo fora dela, do seu mundo interno, e tentará terminar com ela. A gravidez é algo que faz parte da realidade íntima da mulher e a motiva a reorientar-se e adotar uma atitude de forma tal que não pode ser feito por quem está fora. É primordialmente um processo de criação e proposições, dentro de um contexto biológico e social ao qual a mulher está subordinada.
Essas reflexões em torno da gravidez na mulher morta, sustentadas artificialmente suas funções cardiorrespiratórias e metabólicas, como em morte cerebral, fato ocorrido e descrito em vários relatos científicos, proporcionam-nos riquíssimos elementos para pensarmos na ética da reprodução. Podemos, por exemplo, compreender melhor porque uma mulher que alugou seu ventre, para gestar filho de casal do qual não fazia parte, tentou negar-se, ao final da gestação, a entregar o bebê, como contratado previamente. Embora os propósitos iniciais fossem apenas proporcionar condições para que uma mulher desprovida de condições mínimas para gestar um filho o fizesse por seu intermédio, o processo criativo determinou um vínculo e dele uma mudança radical nos propósitos inerentes à gravidez.
Podemos, aqui, retirar algumas conclusões de caráter ético:
1 _ a gestação é um elemento fundamental reprodutivo e insubstituível no processo;
2 _ as ligações existentes entre mãe e filho são sui generis, sem par, não podendo ser comparáveis nem com as que se estruturam entre pai e filho;
3 _ a maternidade pode ser estabelecida por outros meios, como a adoção; porém os vínculos afetivos serão essencialmente diferentes, embora se saiba que na mulher ocorrem alterações orgânicas, além das emocionais, por conta de uma adoção, e que o amor poderá ser tão grande quanto o existente entre mãe e filho natural;
4 _ as técnicas de fertilização assistida deverão, obrigatoriamente, atender a essa realidade, não podendo jogar levianamente com o vínculo patrocinado pela gestação. É mais fácil admitirse, eticamente, a maternidade por adoção de gametas do que pela alocação de ventres gestatórios;
5 _ é válida qualquer tentativa, por meios cientificamente consagrados, de assistir ao processo reprodutivo lançando mão de toda tecnologia disponível, para proporcionar a uma mulher um filho desejado, especialmente naquelas situações em que patologias impedem que esse fato se processe de modo natural e espontâneo;
6 _ devem ser respeitados, acima de tudo, na reprodução assistida, os propósitos criativos da mãe, e somente eles. Vale dizer: não se pode atribuir à gestação propósitos "de fora", isto é, de pessoas ou entidades que não a própria mãe. Fica, assim, excluída a possibilidade de se patrocinarem gestações com finalidades de aprimoramento genético; de geração de indivíduos com aptidões específicas ao desenvolvimento de tarefas determinadas; de geração de órgãos para transplantes e de pesquisas científicas, por mais nobres que sejam.
A reprodução assistida trouxe, no seu bojo, a confirmação de um fato já conhecido mas nem sempre bem aceito. A função sexual está, no ser humano, desvinculada da reprodução. Embora a biologia nos tenha ensinado que o sexo é o modo de reprodução dos animais sexuados, e, no seu conjunto, a cópula é o processo pelo qual se realiza a união dos gametas, aprendemos, também, especialmente com as contribuições de Freud, que a função sexual é no ser humano muito mais ampla do que apenas meio de reprodução. Tem a ver com prazer, sobrevivência e construção da vida, valores que excedem o reprodutivo. Contudo, permanece intacto o conhecimento de que a reprodução é uma das conseqüências importantes que podem decorrer do exercício da função sexual.
Não é de hoje que o ser humano utiliza métodos e técnicas para dissociar a reprodução do exercício da sexualidade. No Antigo Testamento (Gen., 38, 9) encontramos a descrição do uso, por parte de Onan, de um método (coito interrompido) para evitar filhos com sua cunhada, tarefa que seu pai, Judah, lhe havia imposto. Faz parte, pois, da história da humanidade.
E fácil compreender que quanto mais evoluído, em termos culturais e sociais, maior o desmem-bramento que o ser humano promove entre sexualidade e reprodução. É um corolário do conhecimento que, quanto mais primitivo é o ser, mais submetido aos impulsos instintivos. Podemos considerar que um dos elementos de distinção entre o homem e os animais irracionais é sua capacidade de controlar a reprodução por meio da administração consciente de sua fertilidade e do exercício controlado da sexualidade.
Reconhece-se, hoje, uma grande diferença entre o número de filhos de casais das sociedades subdesenvolvidas e o de comunidades com avançado grau social, cultural e econômico. A razão dessa diferença é o uso da contracepção. Com certeza, o acesso aos métodos contraceptivos e ao seu conhecimento é muito maior entre os povos desenvolvidos do que entre os subdesenvolvidos.
Cabe, então, perguntar: é ético sonegar aos mais desafortunados o acesso à informação e ao uso dos métodos contraceptivos? Claro que não. A esse respeito convém citar o que foi deliberado na Conferência sobre População e Desenvolvimento, promovida pela ONU, no Cairo, em 1994. "Saúde reprodutiva consiste no estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doenças ou enfermidades em todos os aspectos relacionados ao sistema reprodutivo, suas funções e processos. Saúde reprodutiva implica que as pessoas possam ter uma vida sexual segura e satisfatória, que tenham capacidade de reproduzir e decidir livremente se e quando querem ter filhos e o espaçamento entre eles. Esta última condição implica que homens e mulheres sejam informados e tenham acesso a métodos contraceptivos seguros, eficazes, aceitáveis e economicamente acessíveis, que sejam de sua livre escolha, assim como a outros métodos de regulação da fertilidade que não sejam contrários à lei, como também o direito de acesso a serviços apropriados de saúde que possibilitem à mulher uma gravidez e um parto seguros e dê aos casais e à mulher a chance de ter um nascituro saudável. Em nenhum caso o aborto deve ser promovido como método de planejamento familiar."
A dimensão do impacto ético da anticoncepção não se restringe ao âmbito do indivíduo, do casal ou da família. Vai bem mais longe. Estende-se ao universo das questões ecológicas, de preservação ambiental. É fundamental que a população do planeta Terra não exceda os limites toleráveis. A questão da preservação ambiental e das condições de sobrevivência do homem está diretamente relacionada ao problema demográfico. A cada novo indivíduo que é acrescido à população há um aumento significativo da demanda de fatores que comprometem o ecossistema. Esse aumento ocorre segundo uma razão geométrica.
Não se pode esquecer que foi a medicina, por meio de seus avanços técnicos, que proporcionou o principal elemento da quebra de equilíbrio no crescimento populacional. A redução drástica das mortalidades materna, fetal, neonatal, infantil e por doenças infecto-contagiosas representa o principal fator de geração de grande mudança no ritmo do crescimento populacional. Para tanto, também colaboraram o controle das epidemias e a extinção de endemias, reduzindo o tempo de duplicação do número de habitantes e conseqüentemente aumentando, de forma significativa, a longevidade. Cabe, pois, à Medicina também oferecer os meios de recomposição desse equilíbrio, o que pode ser feito por meio da anticoncepção, instrumento ético para regular a reprodução humana e controlar a relação entre a população e a capacidade do planeta.
Quando crianças aprendemos que o homem foi criado por Deus à sua imagem e semelhança. Hoje, é possível afirmar que quanto maior for a consciência que tiver de si próprio e de suas funções, exercitando um domínio sobre elas, tanto mais próximo estará do Divino Criador.

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